Passados 20 anos, apenas uma pessoa foi condenada e, mais tarde, absolvida, pelo Massacre do Carandiru. O único acusado pelos resultados da tragédia que foi julgado até agora, coronel Ubiratan Guimarães, o comandante da Polícia Militar à época, foi inocentado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em fevereiro de 2006. O militar foi assassinado em setembro do mesmo ano, em crime do qual é acusada a então namorada.
Em 2001, o coronel Ubiratan, como era conhecido, tinha sido condenado a 632 anos de prisão pela morte de 102 dos 111 prisioneiros que foram vitimados na invasão do complexo penitenciário do Carandiru. Segundo documento de 2000, da CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), órgão ligado à OEA (Organização dos Estados Americanos), havia superlotação no complexo.
O Carandiru tinha, à época, 7.257 prisioneiros, mais do que o dobro da capacidade comportada, sendo que 2.706 deles estavam recolhidos no Pavilhão 9, onde ocorreu a revolta. A ação dos policiais é considerada um dos mais violentos casos de repressão à rebelião em casas de detenção, segundo a própria CIDH. Até hoje, não houve a responsabilização de nenhuma autoridade.
Em 2000, a comissão concluiu que o caso caracterizou um “massacre, no qual o Estado violou os direitos à vida e à integridade pessoal” e pediu investigação dos fatos e consequente punição dos responsáveis, além de reparação às vítimas. Segundo o documento – o Relatório 34/00 – “o Estado violou os direitos à vida e à integridade pessoal e que, em suas sequelas, também foram violados os direitos ao devido processo e à proteção judicial”.
Em setembro do ano passado, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo negou recurso de defesa e decidiu manter a decisão de levar a júri popular mais de 75 policiais acusados pelo massacre. Na última quinta-feira (27/9), o juiz José Augusto Nardy Marzagão, da Vara do Júri de Santana, decidiu levar 28 desses policiais a júri popular que marcou para o dia 28 de janeiro do próximo ano. O processo será julgado em etapas, devido ao grande número de réus envolvidos.
“É um processo atípico. Desde o início, ele se mostrou um processo atípico, em função do número de réus. Em razão da nossa sistemática jurídica, que nunca concebeu talvez um processo de júri com tantos réus, acaba gerando alguns entraves que, se não vencidos agora, podem gerar nulidade no futuro. Infelizmente ele acaba se protelando no tempo”, disse Norberto Joia, promotor de Justiça do 2º Tribunal do Júri, em entrevista à Agência Brasil.
A demora no julgamento e na responsabilização pelas mortes se deve, em parte, pelo fato de o processo ter passado da Justiça Militar, onde tramitou entre 1992 e 1996, para a Justiça Comum. De acordo com documento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o processo penal contra 119 policiais acusados de homicídio qualificado agravado, que foi instaurado perante a Auditoria da Justiça Militar em 23 de junho de 1993, "sofreu uma série de atrasos".
Depois de três anos instaurado, no dia 13 de fevereiro de 1996 o processo foi transferido à Justiça Comum, porque havia indícios de responsabilidade de autoridades civis na época (o governador Luiz Antonio Fleury Filho e o secretário de Segurança Pública, Pedro Franco de Campos).
Promulgada em 1996, a Lei 9.299, conhecida como Lei Bicudo por ter sido proposta pelo então deputado federal Hélio Bicudo, e que prevê que crimes de homicídios dolosos cometidos por policiais militares deixariam de ser julgados pela Justiça Militar, levou o processo para julgamento em tribunal do júri.
“Em relação a este caso, poderíamos ter avançado numa modificação da legislação, que acabou não havendo. E essa modificação que ocorreu [Lei Bicudo], e acabou pegando esse caso, acabou trazendo alguns entraves a mais para que o julgamento fosse realizado”, disse o promotor.
Entre os entraves, lê diz que o processo saiu da Justiça Militar quando estava pronto para ser julgado. “Quando foi apurada a competência para que ele viesse para o júri, isto importou no cumprimento de um comportamento que era diverso do que existia na Justiça Militar e que impingiu a esse processo uma marcha mais lenta do que aquela que nós desejávamos”, explicou o promotor.
Apesar de decorridos tantos anos após o massacre, o promotor ainda acredita ser possível haver condenação dos responsáveis. “Embora não seja a melhor justiça, porque justiça tarda é justiça falha, mas é possível [condenar os responsáveis]”, disse ele.
Para Rodolfo Valente, advogado da Pastoral Carcerária em São Paulo, o governador de São Paulo na época, Luiz Antonio Fleury Filho, e o então secretário de Segurança Pública, Pedro Franco de Campos, também deveriam ser responsabilizados pelo massacre.
"Entendemos que o governador Fleury e também o secretário Campos deveriam estar no banco dos réus. Não adianta só responsabilizar os policiais que participaram da ação”, falou ele, em entrevista à Agência Brasil.
A advogada Ieda Ribeiro de Souza, que defende todos os policiais acusados pela ação e que devem somar 79 (policiais, ex-policiais e alguns deles já na reserva) no processo, disse que já pediu habeas corpus para que o efeito extensivo dado ao coronel Ubiratan seja concedido também aos policiais que defende.
“O que alegamos sempre é que existiu uma reação dos policiais à agressão quando eles ingressaram [no Carandiru] e que eles [policiais] estavam cumprindo ordens. Assim como o coronel Ubiratan foi absolvido pelo estrito cumprimento do dever legal, eu entendo que todos eles devem ser absolvidos”, disse a advogada.
Em entrevista à Agência Brasil, a advogada disse que esperava o resultado da perícia do confronto balístico do IC (Instituto de Criminalística) para que o julgamento fosse marcado. No entanto, quando decidiu agendar a primeira etapa do júri popular, o magistrado disse que o Instituto de Criminalística já atestava a impossibilidade de realização do confronto balístico e que, portanto, a falta da perícia não deve prejudicar o julgamento.
“Qual a razão de ser da existência de um processo que permanece sem julgamento por 20 anos? A resposta nos parece óbvia. A rigor, torna-se imperioso o julgamento do presente feito”, diz o juiz, em sua decisão.
Mas para a advogada, a falta do resultado do confronto balístico do IC pode sim trazer prejuízos ao julgamento, já que, sem ele, seria impossível individualizar as condutas. “Eu não tenho individualização de conduta, então não tenho como afirmar quem é o culpado ou não. O que posso te dizer é que a conduta tomada pela Polícia Militar foi a necessária”, argumentou.
Segundo a advogada, dos 300 policiais militares denunciados à época, somente 79 continuam respondendo a processo. A maioria dos policiais anteriormente denunciados responde por lesão leve, que já prescreveu. Há alguns policiais também, segundo ela, que foram impronunciados (ou seja, réus contra os quais foram apresentadas denúncias ou queixas improcedentes) e outros que respondem por lesão de natureza grave.
Procurada pela Agência Brasil, a Secretaria de Administração Penitenciária informou que o exame inicial foi feito por peritos do Instituto de Criminalística. “Porém, o exame de confronto balístico não foi feito porque é necessário o agrupamento de centenas de armas e projéteis”, disse a assessoria da instituição, por e-mail.
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